(Do livro “O mel e as orelhas de Midas”, 2008)
O boteco é uma instituição brasileira, antiga e
consagrada, proliferante desde as vilas às grandes
metrópoles. Botecos de verdade têm clientela fiel e
cativa, às vezes incorporando, por afinidade, um ou outro egresso da massa flutuante.
E só prosperam e duram quando seus proprietários são aglutinadores
especiais.
Evoco
o boteco do Zé Pio, em Prata City, onde o Joaquim Latada, pouco
antes de desaparecer em São Paulo, narrou-me, em detalhes, os 26 gois
olímpicos que fez em sua carreira futebolística; e o Juca's Bar, em Ribeirão Preto,
cujas atrações eram a fraternidade, o truco e o próprio Juca (apesar da
cerveja quente), para contar um pouco da história do Bar O Meu Cantinho, que
em pouco virou Armec e durou 19 anos.
O
bar O Meu Cantinho instalou-se na esquina das ruas Bernardino de
Campos e Oscar Rodrigues Alves. Adaptado num imóvel residencial, com
duas portas para a Bernardino, montagem rústica, balcão e refrigeradores comuns,
mesas e cadeiras simples, de madeira, piso cerâmico no primeiro ambiente
e no segundo, um antigo dormitório aproveitado, tacos não encerados,
onde rolava o carteado, e um pequeno e único sanitário. Inaugurado
na sexta-feira de carnaval de 1970, teve como primeiro cliente o advogado
Hélio Costa, que entrou fantasiado para comprar cigarros. Proprietários
Michel Laje e seu sobrinho Munir, com a retaguarda da esposa deste,
dona Elza, criadora de quitutes excelentes, as esfirras e os quibes em destaque.
O
trato e a fidalguia de Michel e Munir fizeram crescer rapidamente a freguesia.
Foram chegando habitués
dissidentes dos bares do Adão e do João
Fumaça, este botequeiro famoso e folclórico por advertir os clientes inconvenientes
com cartão amarelo e, eventualmente, aplicar-lhes o vermelho. A
eles foram juntando gente interessante de vários segmentos sociais e
profissionais, uns já para o aperitivo do almoço e a concentração maior ocorria
na happy hour, avançando noite adentro. Para tanto foi necessária a conquista
do espaço na calçada. Muitos jogadores de futebol engrossavam a
freqüência. Pela presença de tantos futebolistas, surgiu a idéiá encabeçada pelo
Gomes (que foi ídolo da torcida araçatubense, depois de jogar pelo São
Paulo e pela Ferroviária de Araraquara) de se fundar um time de futebol. Assim
nasceu a Armec, Associação Recreativa Meu Cantinho, presidida por
Abelardo Gomes de Souza, o Souzinha. O técnico escolhido foi João Madrid
da Cruz, o Conde; Pata, o massagista; médicos, Jecy Villela dos Reis
e Edman Cazerta; relações-públicas e assessor de imprensa o advogado Jorge
Napoleão Xavier, o Napo. Gomes, Amauri e Luizão assumiram a responsabilidade de
formar o plantel.
O
treino inicial aconteceu no campo do Country Clube. O primeiro jogo
foi contra o time do bar do João Fumaça, no campo da Nestlé. Os adversários
chegaram meio disfarçados, contando com os jogadores do E.C.T.
Maia e profissionais, e aplicaram 11x0 no Arrnec, que só contava com
a turma da casa, do goleiro Hélio Pereira de Souza, mais Amauri, Paulete, Fogolin,
Luizão... ao ponta esquerda Souzinha. No domingo seguinte houve uma
concentração regional de professores no Cristiano Olsen, bem na frente do
bar. Para os transeuntes e o pessoal do magistério estava afixada uma enorme
faixa na entrada: O POVO ESTÁ SOLIDÁRIO COM O ARMEC APÓS
A COVARDIA DO BAR DO JOÃO FUMAÇA. Para o segundo desafio
entre as equipes, o Armec "contratou" bons jogadores da cidade e de
Guararapes, entre eles Vinha e Dida, porém, encarando a disputa com bom
humor, na base da galhofa. Cássio Maia Cardoso emprestou seu avião, pilotado
por James Lourenço, e Souzinha e Pazé panfletaram a cidade, jogando do ar a
propaganda do espetáculo. Quando o professor Clóvis Carbone
fazia seu corte de cabelo na barbearia do João Saburu Ono (onde trabalhava
o Manzélio), vizinha do João Fumaça, o papel publicitário caiu-lhe
no colo. A expectativa estava armada para o jogo que teria como palco o
Estádio Municipal Adhemar de Barros, requisitado e cedido pelas autoridades.
E teve mais. Quando as duas equipes e o trio de arbitragem se perfilaram
no gramado, antes de a bola rolar, a Banda Municipal, solenemente, estava
posicionada e atacou com a marchinha carnavalesca: "Você pensa que cachaça
é água/ Cachaça não é água não/ Cachaça vem do alambique/ E água vem do
ribeirão..."
Capa do livro |
Daí
em diante o Armec passou a jogar contra times da cidade e da região, armando
bom plantel com Zinha, Joyce, Jeová, Noronha, Davéia, Pingo,
Amauri, Bugrinho, Belinha, Luizão..., a eles depois juntando Carlos Alberto,
Olavo, Osmar Spegiorin, Carlos, Perci... Em 1973 sagrou-se campeão
regional da Taça Arizona, torneio amador que envolveu todo o estado.
Disputou e venceu (2x1) a semifinal jogando contra o time da casa em
São José dos Campos, numa noite de quarta-feira, sob frio intenso. Nos preparativos,
além das massagens, aquecimento e a preleção do Souzinha que,
colocando a mão espalmada perpendicularmente sobre as sobrancelhas, dizia:
"até aqui a medicina explica; daqui pra cima só o Souzinha conhece"),
foi consumido um litro de conhaque. Antes o Jeová
procurara o Pazé e declarara: estou desarmado. O dirigente foi para a rua
na busca de Anorexil e de urna porção da erva. No retomo, o jantar-ceia
na estrada, bem regado corno convinha a atletas de bar, foi patrocinado
pelo Vicente Grosso. Chegando a Araçatuba, na tarde de quinta-feira,
havia um telegrama marcando a final contra o Ajax para a
tarde de sábado, em Osasco. Viajaram na sexta, no
ônibus do Olívio Silva, e perderam o jogo. Mesmo assim voltaram gloriosos,
vice-campeões do estado, e o prefeito Valdir Felizola de Moraes levou
a Banda Municipal, sob a batuta do maestro Luís Brandino, com o célebre
Mané Barbeiro no sopro da tuba, para homenagear os heróis no boteco,
frente à bandeira branca e azul hasteada.
As
cores da agremiação foram escolhidas pelo Souzinha, figurando os
azulejos do bar. O distintivo e a bandeira continham uma mão espalmada, os
dedos abertos, cada encimado por urna na sequência das letras A-R-M-E-C.
Os cinco dedos representavam a taxa mensal de juros cobrados
pelo Michel Laje sobre os empréstimos tomados por gente da clientela
e outros bem referenciados: 5%. Quando o tornador de dinheiro deixava
de saldar o compromisso, o senhor Michel ia atrás do devedor:
-
Amigo, como vai amigo? O amigo não está se esquecendo de Michel?
Os
embates futebolísticos prosseguiam. Nestas alturas, o Armec tinha o
seu hino, autoria dos parceiros Jarbas Rister (letra) e Edmundo Alves:
Armec, Armec, Armec,
meu coração
vai vibrar,
minha
maior alegria
é ver o Armec jogar.
Com
chuva ou com sol eu vou,
faça frio ou calor;
eu
não quero ter inimigo,
mas
por causa do Armec eu brigo.
A
imprensa dava espaço aos eventos, as rádios transmitiam os jogos mais
importantes, corno os disputados contra o São Cristóvão, do Rio de Janeiro,
e o CEUB, de Brasília, então participante do campeonato brasileiro. O
São Cristóvão empatara com AEA, então disputando a série B do campeonato
paulista, e perdeu para o Armec. Vencia o CEUB por 1x0 no primeiro
tempo. João Avelino, o folclórico técnico do clube brasiliense, deu
um esculacho nos seus jogadores no intervalo: - "Vocês estão perdendo para
um time de bêbados". E virou o jogo: 2xl.
O
futebol dava mais visibilidade externa ao Armec. Até o famoso ponteiro
Faustino, o Linguiça, casado com uma araçatubense, e que marcara época
na Ferroviária e no São Paulo, vestiu a camisa alviceleste. Todavia, o diferencial
era o espírito da casa, a camaradagem e a fraternidade dos biriteiros,
onde a simplicidade estava a cavaleiro do poder e do dinheiro. Ali nivelavam-se
funcionários públicos, advogados, políticos, médicos, bancários, viajantes,
comerciários, professores, empresários, músicos, corretores, engenheiros,
comerciantes, jogadores de futebol... O Dr. Renato Costa Monteiro,
o boêmio comportado, cantava música sertaneja para o engenheiro-professor
Fernando de Almeida Prado; "De tanto amor", a pedido do professor
Carlão; "Tristeza do Jeca", para o Munir... O Pazé cantava "Brigas".
O Dr. Ubaldo Barbanti gostava de tangos e
interpretava bem o "Garufa", após
boas talagadas de conhaque com gelo.
A
música é complemento essencial aos botecos personalizados. O excelente
violonista Edmundo Alves frequentemente dava o tom. Outras vezes o Carlão do
violão. Noutra longa temporada foi o monumental saxofone de Renato
Peres a atração. Muitas outras vezes foi o flautista virtuose Carlos Poyares
quem dominou o ambiente. Poyares frequentava muito Araçatuba e marcava
ponto religiosamente no Armec. Contudo, o maior acontecimento musical
da casa deu-se com a presença de Alternar Dutra. O grande cantor acertara
apresentação para uma noite de sábado em Andradina, contratado pelos
empresários João Leme, Joaquim de Aquino, Paulo Assis e Pedro Pizzo. Optou por
basear-se no Hotel Chamonix de Araçatuba e para lá dirigir-se
de carro pouco antes do show. No começo da noite aconteceu um temporal
violento e Andradina ficou às escuras. Alternar foi avisado e o espetáculo
cancelado. Assim o Areias, gerente do Banco Bandeirantes, encontrou-o
frente ao hotel e levou-o ao Armec. Topou cantar pela comida, o
conhaque e mais 500 cruzeiros, apenas impondo certas cláusulas: que ninguém
o perturbasse enquanto estivesse cantando; proibia aos bêbados abraçá-lo
e beijá-lo; retirar-se-ia do ambiente e retomaria ao hotel na hora que
lhe conviesse. Como no sábado de noite o movimento era fraco, com o artista
presente passaram a ligar para os habitués. A turma foi chegando. O Mauri
Pavanelo Campos trouxe a pera da Rádio Cultura e de lá colocou a transmissão
no ar. Isso atraiu mais gente para o boteco. Para resumir, Alternar Dutra
exercitou o gogó até às duas da matina.
Outros famosos estiveram no Armec. Fiori Giglioti
contou para a turma casos do futebol depois que seu Scratch do
Rádio ter levado 5 x O do Armec. Numa manhã de domingo,
o Napo apareceu por lá acompanhado do ator Carlos Zara, que na
noite da véspera apadrinhara as debutantes em seu
baile no Araçatuba Clube. Dias depois, numa cena de bar da novela que estrelava,
apareceu a flâmula do Armec dependurada no gargalo de uma garrafa,
lance de merchandising que o artista
patrocinou a pedido do Souzinha.
No
Armec, apesar de toda a galhofa praticada, seguiam-se normas estabelecidas
e respeitava-se a hierarquia. Tolerava-se o jogo do bicho, mesmo com
a presença eventual do coronel Ostini. Além da diretoria constituída e seus
assessores, havia o Departamento Jurídico, tendo como titulares o Dr. Francisco
Fogaça de Almeida, procurador do estado, e o Dr. José Correa Novarese.
Os oradores efetivos eram João Madrid, Souzinha e o ex-vereador Leontino
Leoni, este de voz empolada e discursos prolixos, e que também exercia
a prática de psicólogo da massa. Quando Leontino iniciava suas peças de
oratória, a bandeira do Armec era hasteada, lenta e solenemente, o pessoal ia
se retirando e ele discursava para quase ninguém. O Souzinha, de todos o maior
gozador, começava, invariavelmente, os seus discursos assim: "Senhoras e
senhores, senhores ouvintes, só vendo para crer. Close, please..." A
saudação às senhoras, por certo, dirigiam-se às frequentadoras
do pedaço, Tianinha, Pretinha, Mineira e seus bilhetes de loteria...
Numa
crise, Souzinha renunciou à presidência. À tarde, convocou os amigos
ao seu escritório e lá o Pazé, entre doses de uísque e envolto pela bandeira
do Armec, foi empossado para sucedê-lo. À noitinha, o novo presidente chegou ao
boteco, macambúzio, apresentando sua renúncia, premido pela reação da mulher
que o ameaçara de separação. Moretti, o vice
eleito, quis assumir, mas, para desgosto seu, melaram a eleição.
A
turma tudo fazia para manter o Armec em evidência. Num carnaval foi
organizada a participação nas noitadas do Araçatuba Clube. O Napo, membro
da comissão julgadora, articulou a atribuição do prêmio de vencedor ao
bloco do Armec. Todavia, a ação de maior ousadia foi perpetrada por Madrid,
Moretti e Souzinha, numa noite em que Paulo Egídio Martins, governador de São
Paulo, era homenageado na Câmara Municipal, então na praça Rui Barbosa. O trio,
alcoolizado, deslocou-se do boteco, bem próximo,
e em plena sessão solene fez entrega da flâmula do Armec ao homem
mais poderoso do estado.
Recolhi apenas um pouco da fieira de histórias tantas do Armec. Ia até me
esquecendo do professor Tonhão, que dizia ter sido jogador do Botafogo de Ribeirão.
Algumas vezes, chegava ao redor das nove da manhã, com a mesma conversa
que jogava em outros bares:
-"Munir, o Napo apareceu por aqui? Marcou
comigo às nove horas. Enquanto espero, dá urna pinga aí".
Num dia surgiu um
visitante, irmão do Munir. Ficava numa mesa ouvindo os papos,
observando a clientela e uma ou outra mulher que entrasse. Até que alguém lhe
perguntou:
- O que o senhor faz lá
em Minas Gerais?
- Sou padre. Estou
achando vocês muito alegres e simpáticos.
Os que ouviram foram saindo aos poucos, quase
esvaziando o boteco. Depois, o lado
religioso da família foi reforçado, quando se soube que o solteirão Michel
tinha duas filhas, ambas freiras confinadas num convento.
Aos domingos, após a
missa, presença certa era o alfaiate José Santiago Pereira, sempre de temo
branco. Depois da terceira lisa desandava a falar, orgulhosamente, do filho
Arnaldo, médico ortopedista muito conceituado no Rio de Janeiro.
O filho único do Munir
foi-se tomando rapaz, apresentava trejeitos e desinteresse por moças.
O pai, preocupado, pediu ajuda ao Pé-de-Bicho. Dava-lhe dinheiro para
levar o moço às mulheres. Ele ia, usava a grana em proveito próprio e relatava: - "O menino
está indo bem". O Pé-de-Bicho era o
mais prestativo dos clientes da casa. Numa ocasião em que o abuso da vodka com caju provocou no T. e no O.H.M.
incontinência fecal incontrolável, foi
ele quem os removeu para as respectivas residências. O Armec não dispunha do Opala branco que o Boião e o Jaguar
utilizavam na época para levar os bêbados do Bola 7 para casa.
Capítulo à parte merece
o garçom Pescuma, bem entrosado com a clientela, indisciplinado,
com fama de lesar os fregueses e os patrões, e que desapareceu da cidade quando o Armec encerrou
as atividades.
Passados dezenove anos
do fechamento das portas do boteco célebre, além do Michel e do
Munir que foram buscar o repouso eterno em São Lourenço-MG, quase todos
os espíritos dos biriteiros se libertaram da matéria por aqui. No início do
projeto de escrever esta crônica, reuni em casa, em torno de um churrasco
bem regado, assado por meu genro Ortiz. Souzinha, Jarbas Rister, Napo, Arlindo Leite, Mauro
Femandes, Pazé e Moretti, remanescentes que
vivenciaram intensamente
todo o tempo da existência
do Armec. O Moretti e o Souzinha recordaram muitos
lances e pouco depois partiram para a outra dimensão. Ainda busquei outras
histórias nas memórias do Pazé, do Dr. Renato Costa Monteiro e do Dr. José
Correa Novarese, parceiros desta crônica.
Frequentar
o Armee dava status. Os políticos, volta e meia, mostravam as
caras por lá: Valdir Felizola de Moraes, Jorge Maluly, Dr. Cotrim, Sílvio Venturolli,
Dr. Aristides Troncoso Peres... Misturavam-se à clientela, assídua ou
eventual, composta de gente interessante: Dr. Renato Costa Monteiro, Mexe-Mexe,
Pilha Fraca, José Bento, Jurandir, Joiro Fontoura, Clóvis Picoloto,
Cavichini, Zé Alves, Dirceu Lampeão, Acioly Pereira, Jorge Geraldi, Mário
Geraldi, Tatinha, Dr. Habib Ghaname, Calango, Carlos, Jairzinho, Dr.
Thales Arouca, Pivoto, João Borges, Orlando Rodrigues, Newton de Lima,
Miguel e Maroca, sogro e genro, cuja amizade fortaleceu-se na convivência
alegre do boteco... E o Militão que, num jogo do time cascudo do
Armec, suplicou ao técnico Pazé que o escalasse, pois na arquibancada do
estádio estavam os treze filhos para prestigiar o craque-pai.
Nos
dezenove anos de existência, o melhor do Armec foi o ecumenismo
e a harmonia, cujo somatório resultou em muita amizade e alegria. Pessoalmente
lá estive três ou quatro vezes. Porém, eram notícia frequente o boteco
e sua gente. Custou-me juntar fragmentos de sua história neste escrito que
parece longo, mas é breve, face à dimensão que teve o Armec. Gostaria de
ter mais aprumo literário para fielmente retratar, para quem não viveu nem
viu, o ambiente, as artes das pessoas, a empolgação e os embalos de tantas
personalidades que enriqueceram o convívio e a vida da cidade.
"Senhoras
e senhores, senhores ouvintes, só vendo para crer" — evoco o
discurso do Souzinha, uma vez mais. Creia em mim e imagine: o Armec foi demais!
*Geraldo da Costa e Silva, médico, escritor, membro
da Academia Araçatubense de Letras, 11 livros publicados
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