Carta à velha senhora - Jorge Napoleão Xavier

Foto: Folha da Região


(Folha da Região, 2 de dezembro de 2000)

            Bom dia, Araçatuba! Escreve estas linhas quem aqui nasceu e vive. Que guarda na memória os devaneios, os sonhos, os mistérios e os segredos que a envolvem. Não são diferentes, piores ou melhores, que os das outras cidades. Pelo sim e pelo não, porém, as outras não têm beleza e nem história porque não se chamam Araçatuba.

            As casas de comércio concentravam-se no centro. Hoje, se referem ao “centro velho”, com um ar pejorativo. Mas nem sempre foi assim. Na antiga Rodoviária, “seo” Juvenal vendia banana nanica, pé-de-moleque e rapadura. Benjamin, o leiteiro bigodudo, fazia regador de água, o dia inteiro sentado ao lado da cadeia, Ao redor, as residências. Assim era a senhora, mais ou menos, dona Araçatuba daqueles tempos.

            Os amantes-governantes até que foram fiéis, mas nem tanto: uns a agrediram, todos os dias, não se importaram com o teu presente e muito menos com o teu futuro. Outros não deram o tratamento de princesa que a senhora merecia.

            Baniram a Maria Fumaça. Os novos donos da ferrovia simplesmente a arquivaram no almoxarifado da saudade.

            Mesmo escorregando aqui e acolá, todavia, teus passos mantêm-se firmes. As enfermidades? Corriqueiras. A menopausa dos 50 anos passou incólume e os hormônios do progresso estimulam a esperança no amanhã.

            Os presos não transitam mais a pé, escoltados, com as calças caindo, pela General Glicério, entre a cadeia e a delegacia, no trecho onde os moleques descalços jogavam bola no areião em frente à casa do Edson Cabaritti Cury, o Bolinha da TV.

            Por ordem expressa do além, o cego Peixoto deixou de cobrar as contas perdidas. Seu sucessor, o negrinho Traçaia, sede absoluta do sorriso, seguiu-o pela eternidade. Meu irmão Jorge Expedito já não me leva mais pela mão na rua Oswaldo Cruz, porque a mão de Deus o buscou antes do vencimento do contrato de alegria e de bonança que havia firmado com a família e com a vida.

            Emilinha Borba, Marlene, Dalva de Oliveira e Isaurinha Garcia pararam de cantar nas festas da Norogás. Orlando Silva, Zé Trindade, Nelson Gonçalves e muitos outros deixaram de circular na zona boêmia da ex-13 de Maio (rua 15 de Novembro). A noite agora é perigosa e o meretrício sumiu nas modernidades esquisitas do sexo.

            Proibido nadar no Baguaçu, vetado pela poluição. Com a morte dos rios, morrem também os meninos do rio. O Parque Saffioti asfixiou-se, dando fim aos bailes onde os casais dançavam e os moços bebiam cerveja e não cheiravam nada. Cresceram as crianças da praça São Joaquim, os filhos dos ferroviários, que aprendiam radiotelegrafar e a jogar futebol de gente grande.

            As brincadeiras noturnas na praça da Santa Casa ficaram sérias, erotizaram-se. O colégio ainda é dos padres de Dom Bosco e de São Domingos Sávio: Mário Pelatiero, Mário Forgione e Guido Parra estão nas lembranças do Tantum Ergum Sacramentum.

            A rua Oswaldo Cruz deixou de cultivar seus poetas Almir Rodrigues Bento e Aldo Campos. Ela, que vivia cheia de bicheiros e de cambistas, ainda se recorda de Lázaro dos Santos e de Ernani Siniscalschi.

            O velho Costa vendia pastéis bem perto da cozinha do Pompeu, que ajudou a criar muitos filhos de ninguém. Virou esputinique o arroz caipira, porém decente e educado, da Cantina do David Gaspar. O piano da Cantina do Odilon emudeceu.

            José Dionísio, João Miranda de Souza e o doutor Pedroso não impulsionam mais o futebol canarinho. E o Estádio Ademar de Barros se esvaziou de Jonas e Dionísio, Brazão, Pedro e Vander; Botina, Oswaldinho, Tremembé, Alceu, Cláudio Chulé De Camilo, Fernando, Saraiva, Claudinho, Alfredinho Neves, Dias, Bota, Bode, Almir, Traçaia, Ferrão, Helinho, Pingo, Zinho e Hugo.

            Milani, Leopoldo e Fatori não circulam mais de terno e gravata em nome da lei, que agora se sente insegura. O silêncio invadiu o cabaré de dona Lídia, que deitou madame e acordou mendiga.

            Hilton de Abreu Gomes foi o melhor de todos mesmo com o joelho inchado, ainda não surgiu substituto para marcar os gols de falta e de “sem pulo”.

            A “Resenha Esportiva” no ar, Fiori Giglioti, Clóvis Corrêa e Newton Brasil de Lima não falam mais ao microfone da PRI-8, Rádio Cultura, onde permanece o Belô. A Difusora, a Luz (que lançou Hermano Henning e Hélio Negri), o Diário de Araçatuba, A Comarca, Tribuna da Noroeste e A Cadência. Depois, esta Folha da Região, Barretinho, Bira e Luís Deletezze, mais tarde o Genilson, a reviver a Cinelândia (com o Toshio Ueno e o Élcio Silveira Bueno).

            Na portaria do céu, Tatá protege a boêmia, ao som da bateria da bateria do Passarinho, do sax do Antonio Bombonatti e do pistão do Pedro Turrini. Mexe-Mexe agradece em nome da turma.

            Fernando Amaral de Almeida Prado, em bate papo com seu amigo baiano Mané Pereira Menezes, Mané Barbeiro, não carrega mais o Estadão debaixo do braço e nem o charuto na boca.

            O modismo do tênis e da roupa pronta fecharam a sapataria do “seo” Acúrcio e as alfaiatarias do Luís Mendes, do Canato, e do Benevides. Não há quase ninguém à porta do Araçatuba Clube e os associados não ouviram falar em Clóvis Picoloto, Dario Lorenzi, Angelim Amantéia e Manoel Barbosa.

            Procópio Ferreira e Menotti Del Picchia nunca mais vieram falar de teatro e de literatura. Ou de política. A praça Getúlio Vargas continua no mesmo lugar, mas sem juntar outros 21 mil brasileiros para ouvirem o próprio Getúlio discursar, ao vivo.

            Zelão aposentou-se do Manoel Bento da Cruz e do mundo. Assim como o rei Arthur Evangelista de Souza, que há pouco viajou. Dona Lóinha Rocha ainda lê o jornal diário. 

            Daniel Ferraz Campos punha os alunos uniformizados pra correr e Hirosi Itinose pra nadar de maiô. Plácido Rocha deitava falação na Oswaldo Cruz, dando ordens ao governador.

            Entre os médicos, permanece o respeito por Delmir, Brívio, Kikuchi, Barbosa, Peres, Raposo, Louzada, Grota, Moreira, Tourinho, Darcy Xavier, Luís Gomes, Dantas, Areobaldo, Barbanti, Uchoa, Castelo Branco, Godoy, Francisco Villela, Chico Villela, Zé Villela, Nico Villeala, Toninho Paula Eduardo, Ubiratan e Jecy Villela, sempre lembrados. Cotrim, Creso, Carrijo, Okida, Olair, Avezum, Biaggioni, Marçal, Cardilli, Pinheiro, Gilberto, Minoru, Ferrari, Rubica, Lobinho, Carlinhos Rosa, Luís Cláudio Pandini, Paulo Coutinho, Lorico, Newton, Nó, Pratinha, Hélio Canário, Sérgio Smolentzov, Hélio Poço, Tuppy, Takao, Enio, Elmano, Paulo e Josué Katsuda, Pachecão, os Fujihara, os Cazerta (Pedro, Silvério e Edman) e Renato, os bambas da geração.

            Joaquim Dibo impulsionou as escolas, D. Quixote do ensino. Antonio Eufrasio Toledo, sejamos moços eternamente. Zézinho empurrou a Reunidas, transporte de gente. Os Dias de Castro, o transporte de carga.

            Na Câmara, Flávio Leite Riberio, o melhor vereador de todas as épocas.

            O padre Francisco Sersen construindo a Igreja São João. Na Matriz Nossa Senhora Aparecida, monsenhor Vitor Ribeiro Mazzei, monsenhor Luso da Cunha Sornas e padre Luís Crescente. Do outro lado, Benedita Fernandes desencarnou, mas nasceu o mito.

            Macaúba e Paulo Leão, Hugo Lippe, João Madrid, Lilito e Florentino, Tutinha, Nena, Gustão, Nilo Spessoto, Juarez, Crispim e Pedro Crotte não foram à Copa do Mundo, mas entendiam de futebol. Luís Quintiliano de Oliveira foi às Olimpíadas, Anubes Ferraz ganhou medalhas sul-americanas.

            Gioconda era o ídolo, ainda que fosse do escracho, Juca Preto, Rosinha, Ernani e Chiquinho saíram das pistas e do carnaval. Nos clubes, Alexandre Filié resistiu, sambou no pé.
            Carlos Aldrovandi plantou a FOA, por ordem de Zeferino Vaz. Primeiro mundo.

Oswaldo de Souza Martins, Ricardo Wagner e Adelino Marques balançavam as colunas do júri.
            Waldomiro Novais, Popó, Juvenal Rodrigues de Moraes, Ubirajara Lemos, Jeremias Alves Pereira, Paulo Alcides Jorge, Hiroshi Itinose e Antonio Ferreira Damião escreveram muitas das estórias e Fabriciano Juncal imprimiu o livro “A Verdadeira História da História de Araçatuba.
            E aqui estamos nós, Araçatuba. Ao final do século, início do novo milênio, há quem diga que evoluiu. Os profetas do pessimismo pensaram o contrário, mas a serra os vencerá.

            No dia de teu aniversário, dói constatar que muitos amigos que entraram no quarto para dormir nunca mais acordaram. Descansam lá, onde a ressaca da vida se senta com água da bica São Pedro, presente em pessoa, dono do lugar.

            Outros tantos continuam teimando em trabalhar. Eliseo e seus terrenos, o Shopping, o Fernando Sérgio, as construtoras, Genilson no jornal, TV-I, o comércio, a indústria e os serviços. O ecoturismo, as escolas, os clubes de praia, motéis. As casas de caridade. O colorido barulhento da moçada na avenida Brasília.

            O prefeito Maluly Netto herdará. Que faça de tudo pela Velha e Boa Senhora, que Deus o proteja, te proteja e a todos nós, parabéns!

            Até logo, Araçatuba, saúde e paz!

*Jorge Napoleão Xavier (26/051944 - 27/10/2016) advogado e cronista.

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